domingo, janeiro 24, 2010

Leituras: «A Cidade Perdida de Z» (3)

Percy Fawcett terá facultado à família uma existência caracterizada pelas dificuldades financeiras devido à sua compulsão pelas aventuras na Amazónia.
Terá havido quem, psicologicamente, visse na atitude de Fawcett algo de explicável à luz das perturbações, que a ciência investiga.
Mas uma das abordagens interessantes dadas por David Grann no seu livro é o contexto histórico em que ocorrem as expedições organizadas pela Royal Geographical Society: com o desaparecimento da Rainha Vitória acaba a época de ouro do Império Britânico. Que começa a viver a angústia existencial de poder vir a estar em causa.
As revoltas anticoloniais ainda vêm longe e os Estados Unidos terão de viver a sua grande Depressão antes de reunirem condições para quererem tomar as rédeas do mundo depois da Segunda Guerra Mundial.
No primeiro quarto de século os britânicos já se inquietam com os sinais da sua decadência pressentidos na perda de virilidade dos seus conquistadores, como resultado da educação propiciada nos selectos colégios internos ou nos rituais de uma aristocracia, que persegue raposas a cavalo.
Fawcett desprezará esses a quem considera fracos ou cobardes. Para ele e para outros, que o imitam no desejo de conhecimento do que houver ainda por descobrir, a superioridade de uma cultura é baseada nesse esforço tenaz pela superação de todas as fronteiras.
Por isso o relato das suas aventuras entusiasma sobretudo essa pequena burguesia ávida de um outro universo, ainda desconhecido, em que os seus direitos e aspirações ganhem outra dimensão de realidade.
No fundo a actividade geográfica de Fawcett presta-se a essa ambiguidade: ora servem o discurso ideológico imperialista, que defende a superioridade de uma raça sobre as demais ou a fundamentação de uma comunidade de nações regidas pelo mesmo soberano (a commonwealth). Mas serve, igualmente, o discurso dos que não se intimidam perante as piores das dificuldades e decidem ir à conquista dos impossíveis. Arriscando aí a própria pele…

sábado, janeiro 23, 2010

«A CIDADE PERDIDA DE Z» (2)

Uma das mais surpreendentes descobertas de Percy Fawcett na sua segunda expedição na Amazónia foi a de que se pode morrer de fome no inferno verde.
Podemos estar rodeados de vegetação, que faz reinar no solo uma noite contínua, tal a altura das árvores, e nada haver para comer. Porque essa mesma vegetação está em guerra intensa pela sua sobrevivência: há lianas, que se agarram às árvores de uma forma aparentemente inocente e, chegadas lá acima, aonde está a almejada luz do Sol, começam-nas a estrangular até as matar para se alimentarem dos seus nutrientes.
Depois há as espécies venenosas, aquelas que vão causando problemas gástricos em equipas de exploradores já de si fragilizados com as febres transmitidas pelos mosquitos. Ou em que os rápidos dos rios podem suscitar afogamentos ou mortes atrozes nas bocas das esfomeadas piranhas.
Qualquer animal que se aventure à altura do solo pode ser atacado de múltiplas maneiras. E, quando morto, logo uma imensidão de formigas se encarrega dele se alimentarem até à medula.
Ao imaginarmos as expedições da Royal Geographical Society dos finais do século XIX e do primeiro quartel do século XX temos, necessariamente, de concluir haver nelas quase algo de suicidário.
E, no entanto, foram elas que tornaram quase definitivamente conhecidos todos os recantos do planeta.

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Leituras: «A Cidade Perdida de Z» (1)

O desaparecimento da expedição de Percy Fawcett na floresta amazónica em 1925 terá sido um dos mistérios mais singulares do século XX. Sobretudo, porque o movia o desejo de encontrar uma suposta civilização perdida, que alguns gostariam fosse o El Dorado, outros a antiga Atlântida, e a maioria, entre os quais o explorador da Royal Geograhical Society, uma comprovação de terem existido povos de tempos idos, sobre quem nada ainda se conhece.
Porque ele e os companheiros desapareceram na selva e nunca mais apareceram ganharam o estatuto de lenda, porquanto terá havido a possibilidade de, a exemplo de Robert Scott, ter alcançado o objectivo sem possibilidades de regressar vivo para o anunciar.
«A Cidade Perdida de Z» constitui a reportagem, em forma de livro, que o jornalista David Grann empreendeu com o objectivo de encontrar respostas para tantas perguntas deixadas em aberto por tal desaparecimento.
Como é natural neste tipo de literatura, muito bem sucedida no mundo anglo-saxónico, há muita erudição, uma estrutura evolutiva que prende e uma vivência efectiva dos factos por parte do narrador.
Não admira o sucesso editorial, que ele suscita. E este livro em particular confirma-o!

domingo, janeiro 10, 2010

Um museu parisiense

Há uns anos atrás o Frédéric Ferney fez uns programas bastante interessantes no canal ARTE nos quais se encontrava com um conjunto de artistas no cemitério do Père Lachaise para, durante menos de meia hora, perorarem sobre a morte. A ideia de base até era ainda mais curiosa: esse convidado teria acabado de morrer e Ferney seria o anjo-guia, que o iria orientar nos primeiros passos pela definitiva não-existência.
Pelo menos em importância terá sido esse o meu primeiro encontro em termos de imagens em movimento com aquele que é considerado um dos mais interessantes locais visitáveis da cidade de Paris: pela estatuária ali representada, aonde se encontram alguns dos melhores exemplos da Art Déco, pelo simbolismo associado a alguns dos seus ilustres hóspedes (desde o emblemático Jim Morrison a Rossini, de Balzac a Edith Piaf).
Um artigo de Luís Maio no «Fugas» desta semana acrescenta duas outras informações singulares: para além da fauna macabra expectável num cemitério existe muito outra a começar pelas três centenas de gatos, pelos corvos e muitos outros pássaros, pelos lagartos e insectos, que justificariam bem qualquer documentário sobre a vida animal em ambiente urbano.
A outra informação decorre da razão histórica para a criação do cemitério do Père Lachaise: «em finais do século XIX, os cemitérios existentes dentro de paris estavam superlotados, tanto que o dos Inocentes chegou mesmo a rebentar.
Rolaram cadáveres pelas ruas e o seu cheiro putrefacto chegou às imediações de Les Halles, então o mercado central da cidade, o que naturalmente disseminou o horror entre a população.
No dia seguinte ao sórdido aceidente, Napoleão anunciou quatro novos vcemitérios, o maior dos quais era justamente o de Leste.».
É claro que chegado a este tempo em que até os padres pedem para ser cremados - aconteceu a semana transacta em Setúbal! - os cemitérios estarão condenados a prazo: a eliminação dos corpos reduzindo-os a cinzas será solução progressivamente normalizada, transformando tais locais de culto (como ainda o são por exemplo no México) em campos de ruínas mais ou menos abandonados.
O Père Lachaise já vai mais à frente: nos dias de hoje pode ser tido como mais um dos museus da cidade luz.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Slumdog Millionaire - Trailer

Não é que a curiosidade fosse muita, mas a oportunidade para espreitar para o premiado filme de Danny Boyle na televisão foi argumento bastante para passar um serão agradável, por muito que estejam bem presentes todos os defeitos apontados pelos críticos mais contundentes: o miserabilismo, a incredibilidade da história em si, a visão estereotipada da maioria dos personagens e o final feliz à medida das ansiedades dos espectadores mais sequiosos de histórias da carochinha.
Mas, enquanto entretenimento, não esteve mal. É sempre simpática a ideia de que os bons acabam por se sobrepor aos mauzões, que os menos maus destes últimos até se redimem e que haverá promessas de muitos meninos a caminho, quando os protagonistas desaparecerem para o que se presumirá venha a ser uma história sem mais sobressaltos (e porventura, muito mais entediante!).
Há formas manifestamente piores de desperdiçar o nosso tempo!

Kevin Blechdom

Dantes Kevin Blechdom chamava-se Kristin Erickson e tinha um duo com outra cantora de quem, entretanto, se dissociou: era o Electum From Blechdom e já assumia o propósito de ruptura com o domínio dos homens no mundo da electrónica. Com o seu banjo, Kevin quer o som como desordem para as suas canções de versos explicitos por onde passa o questionamento da identidade feminina numa lógica de alguma ironia...

sexta-feira, janeiro 01, 2010

HAPPY GO LUCKYl


Merecido plenamente o Urso de Prata de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Berlim em 2008 para Sally Hawkins, a actriz que representa o papel de Poppy, uma professora primária cheia de qualidades: é generosa, divertida, descontraída, sedutora e não se deixa influenciar pelo mau humor de ninguém. Vestida de cores garridas, sacolas friques, botas de pele de cobra, ela personifica um retrato optimista da vida.
Mas à sua volta Poppy quase só encontra pessoas insatisfeitas, frustradas, neuróticas, só às vezes ilusoriamente felizes. Com quem a relação se torna mais tensa é com Scott, o agressivo instrutor de condução, que acaba pateticamente iludido pelas facetas optimistas da aluna.
Como sempre em Mike Leigh, «Happy go-lucky» existe uma atenção às dificuldades do quotidiano (os sem abrigo, o bullying, etc) num mundo cuja realidade pode sempre ser lida na lógica do copo meio cheio e do copo meio vazio.
Por isso mesmo o filme parece muito mais ligeiro do que, efectivamente, o é, já que levanta questões sérias relacionadas com um tempo de mudança de paradigmas para cujas direcções sobram latas incertezas.