quarta-feira, março 19, 2008

«POLUMGLA», UM FILME DE ARTEM ANTONOV

Começa por existir um hospital militar onde os feridos se entusiasmam com as imagens cinematográficas de bailarinas de cabaré. Mas, logo sobrevém um profundo silêncio perante as da guerra, que eles terão experimentado da pior maneira até há pouco.
Resgatando as suas próprias memórias de guerra - mormente, quando vira trinta dos seus amigos, serem assassinados a sangue-frio por um nazi, que se ia acompanhando à harmónica enquanto cumpria a sua miserável tarefa - o tenente Grigori Anokhine evade-se desse estabelecimento para regressar à frente do combate antifascista.
Não vai longe: capturado e em vias de ser incriminado devido a falsificação de documentos, o militar vê ser-lhe atribuída uma missão bastante complicada: chefiar um grupo de prisioneiros alemães, fazendo com que eles ergam uma torre de rádio no meio da taiga para que os Aliados possam colher referências adequadas para alimentarem as linhas de reabastecimento do Exército Vermelho.
Se, a princípio, Grigori sentia um profundo ódio por aqueles prisioneiros, que personificavam tudo quanto aprendera a esmagar, depressa ele se deixa conduzir por um arreigado humanismo, que muito desgostará o espião de serviço, o seu ajudante Tchoumatchenko.
Mas que poderia ele fazer se, depois de uma recepção glacial dos aldeões de Polumgla, logo as viúvas carenciadas de afecto, começam a requisitar os prisioneiros para o conforto das suas alcovas?
Grigori compreende tanto melhor a situação, quanto ele próprio se prende de afectos com a sobrinha da velha xamã Loukeria, que o cura do alcoolismo graças às suas sortes mágicas…
A pouco e pouco a torre é erguida sem que qualquer dos membros do seu grupo especial perca a vida ou sequer se lesione.
Mas ele não poderá evitar o que já estava há muito decidido: acabado o trabalho, o general Batiouk chega com as suas tropas para fuzilar sumariamente os alemães. Que terão cumprido uma tarefa inglória, já que essa torre para nada servirá, planeando-se a construção de outra a 600 quilómetros. Com outros prisioneiros, ainda não riscados das respectivas listas…
Num filme, que esteticamente remete para um imaginário do antigo cinema soviético, com algumas imagens muito belas à mistura - as passadas, por exemplo, com as auroras boreais, nas quais os alemães vêem uma efémera esperança de se tratar da arma milagrosa prometida por Hitler - «Polumgla» revela, sobretudo, um profundo humanismo já que demonstra como, independentemente, do tipo de regimes, que os empurra para os teatros de guerra, os soldados acabam por ser muito semelhantes quanto às suas preocupações e ambições...
É claro que, comparando um filme russo com um norte-americano sobre o mesmo tema as diferenças são abissais. Sendo o povo russo muito dado à contemplação, «Polumgla» chega a ser exasperantemente lento na demonstração de um tempo de impasse em relação ao que se vai passando na frente de batalha.
Mas, sabendo-se que tão escassos soldados alemães terão regressado das prisões soviéticas, o filme consegue ser convincentemente realista, quando se define quanto ao destino desses prisioneiros...

terça-feira, março 18, 2008

«A CIA E O TESOURO DE GUERRA JAPONÊS», Um documentário de Egmont R. Koch (2007)

Em Fevereiro de 1987 está a iniciarse uma importante reunião em Hong Kong: John Singlaub, um general fanaticamente anticomunista, e que participara na fundação da CIA, está a proceder a discussões quanto ao que irá fazer com o tesouro em vias de ser descoberto nas Filipinas, constituído por lingotes de ouro e platina pilhados pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundical, enquanto ocupavam a China.
A expectativa era grande quanto ao conteúdo desse tesouro, já que ele resultara ainda de outras pilhagens cometidas pelos nipónicos noutros teatros de guerra da época - a Indochina, Singapura e as próprias Filipinas.
Ora, as tropas japoneses pilhavam sistematicamente todos os países, que invadiam e muitas dessas riquezas não tinham voltado a aparecer.
Mas John Singlaub não conta devolver essas riquezas aos seus antigos e legítimos proprietários:
conta utilizá-las de outra forma completamente diferente: até porque reinserir no mercado do ouro toda essa riqueza teria efeitos imprevisíveis para a economia ocidental.
Mas preocupa-o uma possibilidade: que a fortuna de Ferdinando Marcos, acabado de ser derrubado, não proviesse apenas da sua cleptocracia congénita, mas tivesse tido origem nesse ambicionado tesouro, que tivesse descoberto antecipadamente.
Até então, Singlaub distinguira-se no financiamento de diversas forças anticomunistas um pouco por todo o lado e de forma mais ou menos ilícita.
É por isso que a sua chegada a Hong Kong coincide com a sua convocatória pelo Congresso para ser ouvido no âmbito do escândalo Irangate, em que se comprovava a sua participação no financiamento dos Contra nicaraguenses. O tesouro japonês permitir-lhe-ia garantir formas
de financiamento alternativas a esses e outros projectos de subversão política. Agora, a obrigação em regressar a Washington para ser interrogado, impede-o de continuar à procura de tal pecúlio. Que se revela, afinal, injustificada quimera: no buraco escavado em Manila nada se encontra.
É que outro terá sido o destino de tais riquezas: Singlaub tê-las-á procurado com um atraso de diversas décadas.
Ele deveria ter-se interrogado, porque é que, em 1948, e com ordens emanadas a partir da Casa Branca, dois notórios criminosos japoneses - Yoshio Kodama e Rioyshi Sasakawa - são libertos por MacArthur, depois de terem sido condenados à forca devido às suas comprovadas malfeitorias.
Teria, assim, compreendido, que pressionado pelo avanço da revolução comunista na China, e vendo o Japão derivar perigosamente na mesma direcção, a CIA tenha decidido pressionar a Casa Branca para libertar os que detinham o conhecimento da origem desse tesouro e os obrigassem a participar com ele no esforço de financiamento das suas acções clandestinas um pouco por toda a Ásia.
Os dois criminosos mostraram-se reconhecidos. O tesouro ter-lhes-á servido para se afirmarem como chefes incontestados na Máfia japonesa (os Yakusa) e para estarem por trás de muitas das acções anticomunistas montadas na Ásia desde então.
Quando, em 1960, o líder socialista japonês é assassinado, quando discursava, está o dinheiro de Kodama por trás dessa operação.
Por outro lado, o seu cúmplice, Sasakawa vai-se proclamando como o fascista mais rico do mundo, enquanto controla o mercado das apostas no arquipélago e se faz fotografar ao lado de Reagan, de Thatcher ou de João Paulo II como se se tratasse de personagem respeitável.
A maior parte do tesouro japonês terá, afinal, financiado a ascensão de Kodama e de Sasakawa no mundo do crime japonês e para financiar as actividades clandestinas da CIA um pouco por toda a Ásia.
O que Singlaub desconhecia… mas com que decerto não deveria ficar deveras preocupado. Afinal outros teriam usado o tesouro para os fins abjectos, que ele pretendia igualmente financiar...

domingo, março 16, 2008

Paradis - Montalvo Hervieu

Se há espectáculos que correspondem aquele requisito fundamental de nos poderem surpreender, os da dupla Dominique Hervieu/José Montalvo, são lapidares.
Há um par de anos eles estiveram na Culturgest com o espectáculo «On Dance». Com as mesmas características que este: a música de Jean Phillipe Rameau, a interligação entre bailarinos e as imagens projectadas e um conjunto multinacional de intérpretes.
Sempre, sempre, um grande prazer...

A IMPORTÂNCIA DO ESFORÇO DE BARENBOIM E DE SAID

O excelente documentário, que Paul Smaczny realizou sobre a Orquestra West Eastern Divan, e os seus dois criadores, Daniel Barenboim e Edward Said é elucidativa sobre a generosidade de um projecto, que bem merecedor seria de um Nobel se a Academia norueguesa não andasse algo distraída.
O título do filme é, por si só, esclarecedor quanto aos objectivos de tal orquestra. »Knowledge is the Beginning»: quando dois povos, com a mesma origem semita, viram costas e andam durante gerações sucessivas a digladiarem-se, faz todo o sentido a criação de pontos para que se voltem a olhar de frente e a conhecerem-se.
Nele vemos Edward Said a refutar que possa haver quem avoque a si o exclusivo do sofrimento. Por isso é ele o grande entusiasta da visita da orquestra ao campo de Buchenwald. Porque conhecer o sofrimento do outro acaba por ser o primeiro passo para o compreender e para com ele criar uma empatia.
A ideia de uma orquestra com jovens árabes, palestinianos e israelitas, todos a partilharem a paixão pela música e a unirem os seus talentos para interpretarem as grandes obras do reportório clássico internacional pode não alterar em nada a política dos governos do Médio Oriente. Mas pode, pelo menos, levar a que um crescente número de jovens salte o abismo mental em que foram educados ao longo de muitos anos e se vão criando as condições para a paz.
O que Barenboim mais teme é a sua presente condição de solitário líder do projecto, agora que o seu cúmplice já foi levado pela leucemia. Porque, é ele próprio a reconhecê-lo, um projecto com esta relevância só ganha sentido, quando há uma direcção partilhada entre militantes dã causa da paz de ambos os lados..
Mas, em Sevilha, aonde a orquestra costuma ter os seus workshops de Verão, ele mantém as sessões de discussão política dantes animadas por Said. E é numa delas, que o ouvimos, com evidente lucidez, a desprezar o conceito de «tolerância». Por comportar uma carga de menorização do outro, que não será aceitável…
Ainda que subvalorizando algumas questões de princípio, há a urgência em pacificar os antagonistas de ambos os lados. E esta orquestra está, à sua dimensão, a concretizar o sonhos dos seus criadores...

quinta-feira, março 13, 2008

A HISTÓRIA DO PS DEFINE A SUA PRAXIS

No «Diário Económico» de 11 de Março, o investigador
Pedro Adão e Silva confessa a sua perplexidade em
relação à convocatória de um comício do Partido Socialista
no Porto como forma de responder na rua à significativa
manifestação dos professores.
Embora fundamentada na necessidade de comemorar
os três anos do Governo de José Sócrates, tal comício
tem sido apresentado pelos comentadores políticos
como uma tíbia estratégia dos socialistas para relativizarem
a aparente condenação das suas políticas por
amplos sectores sociais.
Ora, como diz, Pedro Adão e Silva «esta opção não só
contraria a história recente do PS, como tem pouco a ver
com a identidade do partido.»
É que, ao contrário de muitos dos seus partidos irmãos
europeus, o Partido Socialista português não nasceu a
partir de um amplo movimento de massas, que às tantas
tenha sentido a necessidade de se organizar de forma
mais eficaz para pugnar pelos seus interesses.
De facto, em pleno salazarismo, não havia condições de
mobilizar e organizar esses movimentos de massas. Por
isso a fundação do PS correspondeu a uma aspiração
das elites, desejosas de superar a tacanhez da sociedade
coarctada pelos quarenta e muitos anos de ditadura,
rebocando-a para valores civilizacionais mais avançados.
Desde então tem sido esse o móbil das políticas socialistas,
estejam elas expressadas quer no Poder, quer na
Oposição. Daí que, nas palavras do mesmo investigador,
«o Governo construiu a sua imagem através de uma
agenda modernizadora, apoiando-se numa "maioria
silenciosa", que não se expressa na rua, mas que encontra
eco nas sondagens».
Daí que não faça qualquer sentido medir forças na rua:
nunca foi aí que o Partido Socialista fez impor os seus
valores…
É nessa liderança elitista, que melhor liderará o percurso
dos portugueses rumo à modernidade!

terça-feira, março 11, 2008

«Recordações da Casa dos Mortos»: Janacek na versão Chéreau/Boulez

Quanto mais não seja por ter significado a despedida de Pierre Boulez enquanto maestro em espectáculos ao vivo, as récitas da ópera «Recordações da Casa dos Mortos» no Grand Théatre d’ Aix-en-Provence em Julho de 2007, ficaram para a História da Música.
Mas elas comportariam outros importantes motivos de interesse: por exemplo, a colaboração com o encenador Patrice Chéreau, com quem Boulez já partilhara uma memorável abordagem do «Anel dos Nibelungos» em Bayreuth por ocasião do centenário dessa obra de Richard Wagner e uma não menos relevante «Lulu» de Alban Berg no Palais Garnier em Paris. E há a obra de Janacek em si, ópera em três actos, que foi a última assinada pelo compositor antes da sua morte em 1928.
A ARTE apresentou agora esse espectáculo inspirado nas evocações de Dostoievski sobre a sua experiência de prisioneiro nos campos de concentração siberianos.
É por isso uma ópera para um elenco quase exclusivamente masculino, já que o único papel feminino é o de uma prostituta inserida num drama colectivo onde as individualidades acabam por se fundirem no anonimato indiferenciado da clausura.
A tarefa do encenador é seriamente dificultada pela aparente falta de acção: só pode contar com um conjunto de testemunhos, os dos condenados que relatam as vicissitudes por que terão passado (muitas vezes por meros crimes passionais causados pelo excesso de álcool), exorcizando-as no remorso, na culpabilidade.
Apesar da cinzentude e desolação deste mundo prisional, Patrice Chéreau soube encontrar a mensagem de optimismo de Janacek («em cada ser há uma centelha divina, escrevera o compositor na sua partitura) exaltando em cada cantor-actor a força redentora do desejo.

segunda-feira, março 10, 2008

Autobiografia ou uma ficção com algum interesse?

Margaret B. Jones escreveu «Love and Consequences», um livro muito forte sobre as suas experiências pessoais junto de gangs violentos.
A precisão dos seus detalhes e a forma como conseguiu transmitir essas vivências foram tão convincentes, que uma editora comprou-lhe o texto, editou-o e conseguiu garantiu-lhe críticas muito positivas.
O pior foi que familiares da autora vieram denunciar-lhe a fraude: quase tudo quanto aí contava sobre a família era rotundamente falso. Ora, mesmo procurando corrigir o tiro, ao confessar ter ouvido todas as histórias vertidas para o seu livro nas suas experiências profissionais em instituições de apoio a pessoas de bairros degradados, a autora já não escapou ao ostracismo. Mesmo correspondendo a situações verosimilhantes em muitos bairros complicados das cidades norte-americanas, Margaret B. James passou a ser considerada como uma fraude.
Mas o lamentável nesta história é que, nos Estados Unidos, os livros só se vendem se tiverem efectiva valia literária ou se corresponderem à inefável fórmula das «very true stories». Nestas últimas, o que se procura não é literatura em si, mas a satisfação de uma forma de voyeurismo endémico, que se apossa de uma sociedade aonde a imagem ficcionada se sobrepõe à realidade se com ela se confundir.
Quando essa aproximação se desfaz, caem por terra os mitos. Então até parece que a sociedade norte-americana volta ao fundamentalismo luterano dos seus pais fundadores em que a mentira se torna num crime inominável.
Foi precisamente por isso mesmo, que a antiga campeã de atletismo Marion Jones entrou agora não cadeia: ela não roubou, não matou, não agrediu fisicamente ninguém. Só que, quando questionada quanto a dopar-se ou não, ela terá negado. E, depois, viria a confessar o contrário...

1529 e 1631: DOIS CERCOS, QUE FICARAM NA HISTÓRIA

Há datas da História dos homens, que nos são praticamente desconhecidas, mas merecem ser referenciadas por, em tão significativa dimensão, terem condicionado a evolução civilizacional em que nos enquadramos.
Dois documentários de Hannes Schuler, um deles em parceria com Anne Raerkohl, e ambos de 2006, dão-nos conta dos significativos eventos de duas dessas datas: 1529, ou seja, o ano em que o exército otomano de Suleimão, o Magnífico, estacou a sua invasão ao Ocidente às portas de Viena, e 1631, aquele em que as guerras religiosas entre católicos e protestantes causaram um dos maiores genocídios da época moderna, em que vinte mil homens, mulheres e crianças foram trespassados pelas espadas ou queimados vivos nas suas casas incendiadas.
O primeiro desses documentários, assinado exclusivamente por Hannes Schuler, mostra como a actual capital austríaca ganhou o reconhecimento de bastião cristão contra a ameaça muçulmana.
Fora na Primavera de 1529, que Suleimão, o Magnífico, decidiu sair de Constantinopla à frente de 150 mil soldados. A 21 de Setembro, sem qualquer oposição de permeio, chegam às portas de Viena.
Para dobrar a sua resistência, as tropas do sultão destroem todas as aldeias à volta, matando, torturando e fazendo inúmeros prisioneiros.
Mas os vienenses, apesar de só contarem com vinte mil soldados, não se rendem.
Bem tentam os assaltantes escavar túneis para ultrapassarem as muralhas, não deixando de fustigar continuamente a cidade com as suas salvas de canhão. Mas cada tentativa de penetração dentro da cidade sai gorada aos soldados de Suleimão.
Começando a sentir problemas logísticos quanto ao reabastecimento e com as chuvas a fustigarem as desconsoladas tropas, Suleimão arrisca um último ataque. Aquele que mais se aproxima do sucesso ao conseguir franquear uma das portas de acesso ao interior das muralhas. Mas Viena não cairá…
Um cerco, que termina de forma oposta, é o de Magdeburgo, em 1631.
Estava-se em plena Guerra dos Trinta Anos, que perdurou entre 1618 e 1648, quando Portugal estava sob jugo espanhol e desconhecia o que se passava no centro da Europa.
A 20 de Maio, aos primeiros alvores do dia, um exército de mercenários espanhóis, italianos, franceses, polacos e alemães, irrompem dentro das muralhas, que protegiam a cidade alemã e iniciam uma orgia de sangue e morte, que durará quatro dias.
Os exércitos católicos, na sua sanha fundamentalista, não mostrariam qualquer dó pela população protestante da cidade derrotada...

domingo, março 09, 2008

UM FILME DE ALFONSO CUARON: «OS FILHOS DO HOMEM»

Londres, em 2027. Há dezoito anos, que não nasce uma criança num planeta à beira da ameaça de extinção da raça humana. O rapaz mais jovem, Diego Ricardo, acaba de ser assassinado numa grande metrópole da América Latina só porque recusara autógrafos a alguns dos seus fãs.
É nessa sociedade de características já pré-apocalípticas, que subsiste um poder brutal, sobretudo para com os emigrantes a quem persegue, expulsa e chega a fuzilar expeditamente. E, em contraponto, um grupo revolucionário, os Fishes, que tudo faz para organizar esses proscritos e os levar a uma revolta.
Quem lidera este grupo é Julian (Julianne Moore num papel secundário), que outrora fora mãe de uma criança levada depois pela epidemia de gripe de 2008.
O companheiro de então, Théo, ainda hoje se dá com o antigo sogro, Jasper (Michael Caine), que sobrevive escondido na floresta aonde se dedica ao cultivo de marijuana.
Um dia, os Fishes raptam Theo para que Julian lhe dê uma tarefa inesperada: ajudar a levar uma rapariga negra até à costa britânica e embarcá-la aí no barco de uma organização científica credível, apostada em inflectir aquela perturbadora infertilidade feminina. Mas o que mais espanta Théo é o estado de Kee: ela está grávida já de vários meses, como se depreende da sua volumosa barriga.
Horas depois, quando já dispõem do salvo-conduto arranjado por Théo através das suas ligações ao Governo, seguem pela estrada para a costa, quando são alvo de uma emboscada. Julian será atingida mortalmente com um tiro no pescoço.
Refugiados numa quinta, Théo assiste à designação de Luke como novo líder dos Fishes, e depressa compreende que, não só Julian fora assassinada por uma conspiração interna dos Fishes liderada pelo novo líder, como é a sua própria vida, e a de Kee com a sua criança, que estão em perigo. Sobretudo, porque em vez de a pôr a salvo, confiada aos cientistas do Projecto Humano, Luke quer utilizar a criança como o símbolo da revolta, que prepara.
Com a ajuda de uma enfermeira, convertida em ama da futura criança, Théo consegue ser bem sucedido na fuga à quinta. Arranjam abrigo provisório no esconderijo de Jasper, mas os Fishes dão com eles e em nova fuga, Théo vê Luke abater o ex-sogro à queima-roupa.
Mas será através de um polícia indicado por este último, que entrarão no campo de refugiados de Bexhill, donde contam aceder à bóia do alto mar da qual poderão ser resgatados pelos tais cientistas.
Será aí que rebentam as águas a Kee, nascendo a filha.
Como de costume no cinema comercial, será quando tudo parece perdido, que uma reviravolta no argumento conduz ao happy end, mesmo descontando a morte do protagonista, atingido a tiro no clima de guerra civil por onde terão passado…
O filme é fraquinho e obedece a muitos dos mais convencionais cânones do cinema comercial, mas «Os Filhos do Homem» do mexicano Alfonso Cuaron vem relembrar algumas conclusões passíveis de serem retiradas dos fenómenos políticos de todas as épocas: que, em muitos casos, o extremismo ideológico acaba por beneficiar em larga medida os que mais deveria contrariar. E que o inimigo mais problemático não é o que se conhece, mas o que se esconde hipocritamente ao nosso lado.
Vem isto a propósito de uma história de ficção científica, que dá do futuro próximo uma visão apocalíptica. Numa sociedade ameaçada de extinção, as pontes entre quem assume interesses opostos, deixa de se fazer por concertação, mas pela imposição da força mais brutal. A Inglaterra de 2027 assemelha-se a um estado militar de características fascistas, aonde o racismo assume é apenas uma das suas mais óbvias formas de expressão.
O nascimento de uma criança tem, pois, um sentido redentor. Na promessa de futuro por ela trazido surge a esperança de um tempo bem diferente, capaz de tornar possível o que, pela oposição mais radical, não se consegue.
É nisso, que o filme mais se torna ambíguo enquanto veículo transmissor de uma mensagem de conteúdo ideológico: à repressão fascista não propõe a resposta violenta, mas sim a crença em algo parecido com uma forma de transcendência completamente irracional...

domingo, março 02, 2008

PAUL AUSTER À ESCUTA DE HISTÓRIAS QUE CHEGUEM A SI

Interessante uma entrevista na ARTE com o Paul Auster a propósito da estreia em França do seu filme rodado aqui em Portugal: «A Vida Interior de Martin Frost».
Trata-se da história de um escritor que, uma manhã, acorda com uma mulher ao seu lado na cama. Alguém que ele só julgara existir na sua imaginação e é a sua musa.
Terá sido mais uma dessas histórias, que ele não procurou, limitando-se a aguardar a sua vinda até si. E que ele dispõe depois em palavras e capítulos.
Na mesma entrevista ele conta que o primeiro autor a sugestioná-lo terá sido Edgar Allan Poe, de quem comprou um livro na primeira vez que teve dinheiro seu.
Nunca mais o fantástico o abandonaria, apesar da influência assumida de Joyce e dos filmes mudos de Chaplin, Harold LLoyd ou Buster Keaton.
Mesmo se agora esteja a escrever sobre a política norte-americana pós 11 de Setembro de que é conhecido opositor...

sábado, março 01, 2008

A HISTÓRIA DA AMÁRICA EM DOIS FILMES

O que pode interligar «Haja sangue» e «Este País Não É Para Velhos», que rivalizaram pela conquista dos Óscares deste ano e estão em simultâneo nos ecrãs nacionais?
Há, é claro, as interpretações, que Hollywood premiou: inquestionável a de Daniel Day Lewis, mais discutível a de Bardem, sobretudo se considerarmos a presença de Tommy Lee Jones, ou mesmo de Josh Brolin no mesmo filme dos irmãos Coen.
Outro aspecto comum é o da paisagem. Em vez da América urbana, Paul Thomas Anderson e os Coen viraram-se para as zonas secas e áridas do Sul, aonde abundam fanáticos religiosos ou mexicanos e a ânsia pela riqueza está em quase todos os personagens.
Mas o que mais surpreende em ambos os filmes é a possibilidade de neles se confrontarem duas Américas: a primeira, a de «Haja sangue», é a do século XX, ávida dos recursos naturais alheios, não olhando a meios para alcançar os seus fins: Daniel Plainview não hesita em usar o filho adoptivo como argumento afectivo, quando se trata de fazer negócios.
É, pois, uma América hipócrita e imperialista, capaz de usar e abusar de valores - familiares, religiosos - para se apossar de riquezas antecipando-se aos rivais.
Já «Esta Terra Não É Para Velhos» mostra uma América do século XXI, depois de abanada nos seus alicerces pelos atentados do 11 de Setembro.
É em Ed Tom Bell, xerife experiente, que olha à sua volta sem compreender todas as mudanças verificadas, que melhor se revela esse estado de alma de uma nação, que se acreditou invulnerável e se vê agora a contas com crimes quase inexplicáveis na sua brutalidade.
O personagem de Javier Bardem, Anton Chigurh, é tão estranho ao americano comum como um Osama Bin Laden, porquanto mata indiscriminadamente sem olhar a culpados ou inocentes, numa fúria assassina, que fica por dominar.
É esse o último aspecto em que os dois filmes se aproximam um do outro: ambos mostram epílogos em aberto, sem dar o habitual consolo maniqueísta de Hollywood pelo qual se premiassem os bons e se castigassem os maus.
Quer pela morte, quer pela solidão, quer pela incompreensão de um mundo, que não espera por eles para que pudessem acompanhar as suas mudanças, todos os personagens aqui em causa ficam cientes de que, nem através do filtro de Hollywood, a vida nos EUA desemboca em happy endings.